Por David Stigger, GEPE-UFC
A Instrução Normativa nº 9 de 16 de abril de 2020, veiculada no Diário Oficial da União, traz novas regras para a regularização de imóveis em terras indígenas não homologadas, terras em estudo e reservas indígenas. Segundo a instrução, apenas as terras indígenas regularizadas terão respaldo da Funai para contestar a presença de "imóveis rurais" de não indígenas na TI. É o que diz o § 2 do Art. 1º do documento:
"§2º. Não cabe à FUNAI produzir documentos que restrinjam a posse de imóveis privados em face de estudos de identificação e delimitação de terras indígenas ou constituição de reservas indígenas."
O documento ainda prevê a emissão de uma "Declaração de Reconhecimento de Limites" pela própria Funai para os proprietários que se enquadrarem nas normas da instrução. o processo para emissão da declaração envolve a construção de um "memorial descritivo" pelo proprietário em questão e um planta topográfico. A Instrução não faz menção à presença de Antropólogos para a efetivação do processo. Um vídeo foi veiculado para promoção das novas medidas em que o presidente da Funai afirma que a media irá pacificar os conflitos no campo:
No Ceará, apenas a Terra Indígena Córrego João Pereira está demarcada, dentre as 14 etnias no estado. A instrução soma-se à um momento de fragilidade nas terras indígenas, uma vez que a pandemia do novo coronavírus acarretou vulnerabilidades alimentares e econômicas.
Em resposta, o Ministério Público Federal recomendou que a Funai anule a instrução. Os 49 procuradores de 23 estados da União que se manisfestaram ressaltam que:
"A previsão de repassar a particulares terras que são consideradas pelo ordenamento jurídico brasileiro como indígenas, além de ilegal e inconstitucional, dizem os procuradores da República, pode caracterizar improbidade administrativa dos gestores responsáveis por emitir a instrução normativa 9, o que os tornaria incursos nas sanções previstas na lei de improbidade administrativa, como a cassação de direitos políticos, proibição de contratar com o Poder Público, e multas."
Os Indigenistas Associados (INA), associação de servidores da Funai, ressaltam que a instrução insere-se num quadro político atual de "revisionismo demarcatório", onde é crescente a contestação dos direitos indígenas garantidos pela Constituição Federal. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) ressaltou que a instrução traz "raízes ditatoriais" e que "visam submeter os povos indígenas à assimilação". A Associação Brasileira de Antropologia também se manifestou, salientando dois pontos fundamentais:
"1. A existência de 237 terras indígenas de um total de 723 para o país inteiro, que se encontram em etapas anteriores à fase de homologação (declaradas, identificadas e em identificação) e que, simultaneamente, não se classificam como “reservas” ou “terras dominiais”. Estas terras desconsideradas representam 1/3 do total e, se consideramos o cenário fora da Amazônia Legal, a porcentagem passa a ser de 48%. Há também que se considerar o fato de que, ainda fora da Amazônia Legal, em termos de superfície abrangida, a soma das Terras Indígenas, em todas as fases de regularização fundiária, constitui apenas 1,7% do total das Terras Indígenas no país, mas com uma população de referência muito elevada, dando vida a índices demográficos de superpopulação."
"2. A existência, segundo dados da própria FUNAI, de 114 registros da presença de povos isolados em território brasileiro, sendo 28 registros com presença confirmada e 86 ainda em fase de qualificação e análise. Destes 86 registros, 33 estão fora dos limites de Terras Indígenas ou de “Áreas com Restrições de Uso”. Tal categoria, cabe fortemente ressaltar, é um instrumento administrativo que objetiva interditar uma área, por determinação e responsabilidade da própria FUNAI, para garantir a salvaguarda temporária (enquanto tramita o processo regular de demarcação) do território ocupado por um grupo isolado."
Em nota, a Funai declarou que cumpre a constituição e que não deve interferir no usufruto das TI's ainda não demarcadas. Segundo ela, a instrução tem o sentido de corrigir uma "inconstitucionalidade" relacionada à restrição da posse e utilização da terra em questão, frisou ainda que o laudo antropológico não gera sozinho a demarcação, necessitando do processo administrativo para tal.
No último levantamento feito pelo Observatório dos Direitos Indígenas no Ceará (UFC), os principais conflitos dos indígenas no Ceará se relacionam principalmente à questão fundiária. As denúncias explicitam a degradação ambiental causada nas Terras Indígenas por terceiros: queimadas, desmatamento, implantação de complexo industriário, extração irregular de recursos ambientais, degradação ambiental por meio de tanques de carcinicultura e parques eólicos, invasão das terras, vandalismo, entre outros.
Fonte: Observatório dos Direitos Indígenas no Ceará (UFC).
É importante frisar que a salvaguarda do território para as populações indígenas é de extrema importância, pois ele é essencial para suas cosmologias e sociabilidades. Uma vez degradado, a existência desses povos é colocada em risco, indo de encontro ao que diz a Constituição Federal no artigo 231:
"São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."
Leia a instrução na íntegra:
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