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Nota Técnica sobre a COVID19 na Terra Indígena Yanomami

Atualizado: 24 de mai. de 2020


COVID-19 NA TERRA INDÍGENA YANOMAMI


Por Rede de Pesquisadores e Apoiadores dos Povos Yanomami e Ye'kwana

Brasil, 16 de maio de 2020



Diante do avanço da COVID-19 na Terra Indígena Yanomami (TIY) e do risco de genocídio decorrente da pandemia, criamos a Rede de Pesquisadores e Apoiadores dos Povos Yanomami e Ye'kwana. A Rede é formada por pessoas de diversas áreas do conhecimento - antropólogos, linguistas, advogados e profissionais da saúde - que mantém comunicação direta com as associações yanomami e ye'kwana. Na semana passada, escrevemos a "Nota Técnica para Contribuir ao Combate da COVID-19 na Terra Indígena Yanomami" com o objetivo de fornecer um panorama atual da disseminação do vírus nesta Terra Indígena (TI) e propor recomendações para a proteção dos povos Yanomami e Ye'kwana.


A TIY é habitada por estes povos e abrange uma área de cerca de 9,6 milhões de hectares na fronteira entre o Brasil e a Venezuela nos estados do Amazonas e de Roraima. A população, que soma mais de 26 mil pessoas distribuídas em mais de 300 aldeias, é extremamente vulnerável às epidemias relacionadas ao contato com os não-indígenas e, particularmente, à pandemia do novo coronavírus. A TIY abriga ainda grupos yanomami em isolamento voluntário1, ainda mais sensíveis do ponto de vista epidemiológico. De acordo com a nota elaborada por pesquisadores do ISA/CSR-UFMG, a TIY é a segunda TI mais vulnerável do país.2 Além disso, segundo estudo recente3, o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y) é o segundo mais vulnerável demográfica e estruturalmente entre os 34 DSEIs existentes no país. Portanto, a maior TI do Brasil está na iminência de uma crise epidemiológica com a chegada da COVID-19 nos estados do Amazonas e de Roraima e com os primeiros casos confirmados entre os indígenas e funcionários não-indígenas do DSEI-Y. Atualmente, a TIY está invadida por mais de 20 mil garimpeiros ilegais, que são um dos principais vetores do vírus nesta terra. Os próprios funcionários do DSEI-Y que atuam nas aldeias podem também representar focos de disseminação da COVID-19, uma vez que são bastante vulneráveis ao contágio.


A primeira morte por COVID-19 registrada entre os Yanomami aconteceu no dia 9 de abril em Boa Vista (RR). O jovem de 15 anos da comunidade Helepe passou 21 dias com sintomas do novo coronavírus e, sem receber o teste adequado para COVID-19, não resistiu. Foi enterrado como indigente no cemitério de Boa Vista sem o consentimento de sua família, desrespeitando os rituais funerários tradicionais yanomami. Fora isso, há diferenças entre os dados de indígenas com COVID-19 ou com suspeita da doença apresentados pela Secretaria Especial de

Saúde Indígena (SESAI) se comparados com as informações compiladas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). No dia 15 de maio, a SESAI apresentou 340 casos confirmados e 21 óbitos4, enquanto a APIB, 446 indígenas contaminados com coronavírus e 92 indígenas falecidos5, o que sugere subnotificação de casos por parte da SESAI.


Prevendo o descontrole da situação sanitária na TIY, alguns grupos se afastaram dos postos de saúde e mesmo de suas aldeias para se protegerem. Os Yanomami possuem estratégias próprias para lidar com situações de calamidade, como é o caso do wayumɨ, quando o grupo abandona sua aldeia e suas roças para morar em acampamentos temporários na floresta, vivendo de caça e coleta. Dessa forma, evitam o contato com os Yanomami de outras comunidades - interrompendo o fluxo de visitas próprio do reahu6 - e com os servidores do sistema de saúde indígena. Entretanto, nessa tentativa de se protegerem da pandemia do novo coronavírus, os Yanomami podem ficar mais vulneráveis a outras doenças, como a malária, e morrer por falta de assistência à saúde. Por exemplo, um grupo de aproximadamente 150 pessoas da comunidade Pukima Beira, situada em uma região endêmica de malária no alto rio Marauiá, saiu de wayumɨ em abril com apenas 25 testes rápidos da doença com previsão de retorno para a aldeia em agosto, sendo que algumas destas pessoas apresentam suspeita de hanseníase, oncocercose e tuberculose.


Ainda que o DSEI-Y deva atender às especificidades dos povos Yanomami e Ye'kwana, não é de hoje que o acesso à saúde é precário e já foi denunciado pela liderança indígena Davi Kopenawa Yanomami, presidente da Associação Hutukara Yanomami (HAY), no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU).7 Além disso, os índices de mortalidade infantil, elevados entre os Yanomami e Ye'kwana, aumentaram com o fim do Programa Mais Médicos pelo governo Bolsonaro no início de 2019. A precariedade do acesso à saúde por parte dos Yanomami e Ye'kwana é agravada pela constante invasão de garimpeiros ilegais há mais de três décadas na TIY. O garimpo está relacionado a crimes ambientais, contra a vida e contra os direitos indígenas, ignorando direitos fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil tais como o direito à proteção das terras indígenas demarcadas para os povos indígenas e o direito de um meio ambiente equilibrado. No mais, a omissão do governo no combate ao garimpo ilegal na TIY pode se configurar um processo de genocídio dos Yanomami e Ye'kwana por negligência.


A Portaria Conjunta do Ministério da Saúde e da Funai no 4.094, de 20 de dezembro de 2018, que "Define princípios, diretrizes e estratégias para a atenção a saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato" defende a elaboração do Plano de Contingência para Surtos e Epidemias8. Contudo, o Plano de Contingência de Prevenção e Controle para o Novo Coronavírus (COVID-19) do DSEI-Y é deficiente à medida que desconsidera as realidades socioculturais dos Yanomami e Ye'kwana e a parcela da população que vive em isolamento voluntário na TIY.9 Segundo o próprio MPF, o Plano de Contingência do DSEI-Y não apresenta nenhuma medida que garanta o isolamento dos casos suspeitos e ignora os milhares de garimpeiros ilegais, que são um dos principais vetores de propagação de doenças na TI, desqualificando qualquer medida sanitária adotada.10 Além do Plano de Contingência deficiente, há relatos de descumprimento do período mínimo de quarentena e ingresso de profissionais assintomáticos na TIY, ignorando o risco de falsos negativos nos testes rápidos da COVID-19.


Diante desses fatos, exigimos:

  • respeito ao Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da TIY, tendo em vista as diretrizes para a saúde indígena11;

  • retirada imediata de todos os invasores da TIY12;

  • adequação do Plano de Contingência a realidade dos Yanomami e Ye'kwana13;

  • garantia de que todos os profissionais das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) realizem o teste PCR para COVID-19 antes de ingressar na TIY;

  • escala das EMSI com a menor rotatividade possível; estabelecimento de quarentena de todos os profissionais das EMSI;

  • garantia de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) em quantidade suficiente para os funcionários das EMSI e da Casa de Saúde Indígena (CASAI);

  • contratação emergencial de profissionais de maneira suficiente;

  • garantia de isolamento de casos suspeitos de funcionários e indígenas que apresentem sintomas nas comunidades em conjunto com realização de testes PCR;

  • desenho de protocolo de detecção precoce nos focos reportados e suspeitos, com testes validados que possam ser realizados nas comunidades indígenas, com garantia de coleta e realização dos exames dentro das normas de biossegurança;

  • realização de um período de no mínimo 7 dias de quarentena para os indígenas assintomáticos que retornam da cidade para a comunidade;

  • realização de testes rápidos nos pólos bases que se apresentam como possíveis focos de disseminação para identificação de novos casos, especialmente, em pacientes que possuem comorbidades14;

  • abastecimento de medicamentos e equipamentos básicos nos postos bases e na sede do DSEI-Y; atenção redobrada com medidas de biossegurança para prevenção e controle de infecção, em especial, com a esterilização de todo o material utilizado e com o descarte do lixo hospitalar;

  • respeito às decisões dos profissionais indígenas, os quais são funcionários da SESAI, Secretaria de Educação ou do Exército, caso decidam se isolar junto com suas comunidades, sem penalidades;

  • publicidade dos protocolos dos Pelotões Especiais de Fronteira (PEFs) do Exército sobre as ações de combate ao contágio da COVID-19 e relacionamento com os indígenas que vivem nas regiões dos PEFs de Surucucu, Auaris e Maturacá;

  • criação de estratégias efetivas para garantir controle das principais doenças infecto parasitárias (malária/controle de vetores, tuberculose, infecções respiratórias, oncocercose, hanseníase, verminoses etc), de saúde bucal, das imunizações, levantamento de informações demográficas, de morbidade, entre os grupos que decidiram fazer wayumɨ;

  • garantia de saneamento e protocolos de segurança de todas as aeronaves que circulam na TIY;

  • articulação entre funcionários do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI) e o Sistema Único de Saúde (SUS) de maneira eficiente para que o fluxo dos Yanomami e Ye'kwana infectados com COVID-19 permita o seu atendimento na média e alta complexidade nos centros urbanos;

  • estabelecimento de hospitais de campanha e/ou unidades de referência intermediárias equipadas com medicamentos e suprimento de oxigênio em locais estratégicos dentro e fora da TIY;

  • estabelecimento de local adequado para o isolamento de pacientes Yanomami e Ye’kwana com a COVID-19, evitando assim a disseminação do vírus entre indígenas acometidos por outras doenças nas CASAIs e hospitais; garantia do acionamento da Sala de Situação Local, de acordo com a Portaria no 4.094 MS/FUNAI com o objetivo de tomar decisões rápidas com a participação de especialistas15;

  • garantia da contratação de antropólogos no DSEI-Y; qualificação de informações sobre a COVID-19 via radiofonia ou outros meios, em articulação com as associações e comunidades indígenas.



Imagem: Acervo Funai/FPEYY
Imagem aérea feita pela Funai de indígenas Yanomami que vivem isolados, Roraima. Imagem: Acervo Funai/FPEYY

Rede de Pesquisadores e Apoiadores dos Povos Yanomami e Ye'kwana:


Alcida Rita Ramos, Alejandro Reig, Ana Lúcia de Moura Pontes, Ana Maria Machado, Andrey Moreira Cardoso, Anne Ballester Soares, Brisa Catão Totti, Bruce Albert, Carlo Zacquini, Claudia Andujar, Daniel Jabra, Elaine Moreira, Eliana Diehl, Estevão Senra, Esther Jean Langdon, Felipe Guimarães Tavares, Flávia Bessa Maia, Flávio Bocarde, Gerson Luiz Marinho, Gustavo Menezes, Helder Perri Ferreira, Isabella Coutinho, Ivonne Menegolla, Johanna Gonçalves Martín, José Antonio Kelly Luciani, Karenina Andrade, Karis Maria de Pinho Rodrigues, Leon Terci Goulart, Luciana Uehara, Luiz Davi Vieira, Majoí Favero Gongora, Marcelo Moura, Márcio Patzinger Volk, Maria Rita Kehl, Maria Teresa Quispe, Marina A. R. de Mattos Vieira, Maryelle Morais, Maurice Tomioka Nilsson, Maurício Soares Leite, Nayara Begalli Scalco Vieira, Noemia Kazue Ishikawa, Paulo Basta, Pedro Portella, Rafael Ramalhoso, Ricardo Verdum, Rogério Duarte do Pateo, Silvia Guimarães, Stella Lobo, Tamara Miranda, Thamirez Lutaif, Thiago Magri Benucci, Thiago Chacon, Valeria Vega, Vicente Albernaz Coelho, Victor Py-Daniel, Viviane Kruel.


Notas:

1 De acordo com a base de dados georreferenciados da Funai, há informações sobre oito grupos isolados. Seis ocorrências estão em fase de qualificação pelo órgão indigenista, uma está sendo localizada geograficamente e a outra já foi confirmada. Trata-se dos "isolados da Serra da Estrutura" ou Moxihatëtëma, situados no interflúvio dos rios Catrimani e Mucajaí, região cercada pelo garimpo ilegal. Informações retiradas de: Ricardo, F; Gongora, M. F. (orgs.). Cercos e Resistências: povos indígenas isolados na Amazônia Brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2019, pp 62-71.


2 CSR-UFMG; ISA. Nota técnica sobre a Modelagem da vulnerabilidade dos povos indígenas no Brasil à COVID-19. Disponível em: https://isa.to/2RNMEJ5. Acesso em: 16 de maio de 2020.


3 Azevedo, M.; Damasco, F.; Antunes, M.; Martins, M. H.; Rebouças, M. P.. Análise de Vulnerabilidade Demográfica e Infraestrutural das Terras Indígenas à COVID-19: caderno de insumos. Disponível em: http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/Caderno-Demografia-Indigena-e-COVID19.pdf. Acesso em: 16 de maio de 2020.


4 SESAI. Boletim Epidemiológico da SESAI. Disponível em: http://www.saudeindigena.net.br/coronavirus/mapaEp.php. Acesso em: 16 de maio de 2020.


5 APIB. Atualização de casos indígenas. Disponível em: http://quarentenaindigena.info/casos-indigenas/. Acesso em: 16 de maio de 2020. COIAB. Informativo COIAB: Covid-19 e Povos Indígenas na Amazônia brasileira, 12 de maio de 2020. Disponível em: https://coiab.org.br/conteudo/1589305472205x204329225459859460. Acesso em: 16 de maio de 2020.


6 Ritual funerário que envolve o luto coletivo, mobilizando interações de afinidade entre as aldeias em todo o conjunto multicomunitário dos Yanomami. Sobre esse sistema ritual funerário, ver: ALBERT, Bruce. Temps du sang, temps des cendres: représentation de la maladie, espace politique et système rituel chez les Yanomami du sud-est (Amazonie brésilienne). Universidade de Paris X-Nanterre. Tese (Doutorado em Etnologia), 1985.


7 PRÓ YANOMAMI. O caso DSEI Yanomami: gestão e saúde indígena. Disponível em: http://www.proyanomami.org.br/pdf/o_caos_dsei_yanomami_gestao_saude_indigena.pdf. Acesso em: 16 de maio de 2020.; HUTUKARA. Nota da Hutukara sobre a situação do atendimento de saúde aos Yanomami. Disponível em: http://www.hutukara.org/index.php/noticias/793-nota-da-hutukara-sobre-a-situacaodo-atendimento-de-saude-aos-yanomami. Acesso em: 16 de maio de 2020.


8 MS/FUNAI. Portaria Conjunta do Ministério da Saúde e da Funai no 4.094, de 20 de dezembro de 2018. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/57220459. Acesso em: 16 de maio de 2020.


9 MS/SESAI. Plano de Contingência de Prevenção e Controle para o Novo Coronavírus (COVID-19) do DSEI-Y. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1ti4y0weLDsJYdL-R3r2FuxDf8XWDn2O_ Acesso em: 16 de maio de 2020.


10 MPF. Plano emergencial garimpo Yanomami. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/rr/sala-deimprensa/docs/ACPPLANOEMERGENCIALGARIMPOYANOMAMI31.pdf. Acesso em: 16 de maio de 2020.


11 RCA. Protocolo de consulta dos povos Yanomami e Ye'kwana. Disponível em: https://rca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/PROTOCOLO-Yanomami-capa-e-MIOLO-final-min.pdf. Acesso em: 16 de maio de 2020.


12 Com a intensificação de ações de fiscalização conforme ACP nº 1001973- 17.2020.4.01.4200, protocolada no dia 28/04/2020, MPF. Plano emergencial garimpo Yanomami. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/rr/sala-deimprensa/docs/ACPPLANOEMERGENCIALGARIMPOYANOMAMI31.pdf. Acesso em: 16 de maio de 2020.


13 Considerando também: Portaria Conjunta do Ministério da Saúde e da Funai nº. 4.094 de 20 de dezembro de 2018; Recomendação nº 01/2020/6ªCCR/MPF; Recomendação nº 11/2020-MPF; Resolução CNDH Nº 13, de 15 de abril de 2020.


14 Deve-se considerar que os testes rápidos são capazes de detectar casos positivos somente a partir do 8º dia de infecção/contaminação. Para maiores informações, ver: MS. Diretrizes para Diagnóstico e Tratamento da COVID-19 (17 de abril de 2020). Disponível em: https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/18/Diretrizes-Covid19.pdf Acesso em: 16 de maio de 2020.


15 MS/FUNAI. PORTARIA CONJUNTA Nº 4.094, DE 20 DE DEZEMBRO DE 2018. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/57220459. Acesso em: 16 de maio de2020.

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